Que tipo de relação você temcom a cidade onde você mora? Algum dia, atravessando uma rua, você já se perguntou qual é o seu lugar em meio ao caos que impera nas metrópoles brasileiras? Essas e outras questões relacionadas à vivência humana nas cidades há muito vêm sendo discutidas, com o intuito deapontar caminhos que tornem os centros urbanos menos hostis, insalubres e desumanizados.
O crescimento populacional desenfreado, o trânsito convulso,a precariedade dos serviços de transporte coletivo, a escassez de praças e áreas coletivas de lazer, a ocupação indébita do solo, a construção irregular e aleatória de calçadas e a falta de políticas públicas voltadas para o ordenamento do espaço urbano cerceiamos direitos constitucionais mais básicos dos cidadãos. Aprivação subjetiva do direito de ir e virtorna ainda mais conflituosa a relação entre pessoas e cidades.
Concebidas como “maquinário e herói da modernidade”, como define o historiador Michel de Certeau, as cidades, em pouco tempo, se tornaram verdadeiros centros de desordem. Deformadas pelo inchamento populacional e descaracterizadas pelas constantes transformações provocadas pelo voraz processo de modernização, passaram a ser polos de atração e repulsa. O fracasso do projeto moderno reduziu as cidades à paradoxal condição de utopia e inferno. À medida que crescem também seus problemas se agigantam. E isso afeta profundamente as relações com o humano.
Lugar de inscrição e rasura dos signos que desafiam o olhar do habitante, os centros urbanos passaram a ser palco da atrofia da experiência humana. Isto porque a política desenvolvimentista não pensou no homem. Proscritos, reféns da brutal condição moderna, os habitantes das cidades mais periféricas do mundo permanecem, ainda hoje, acuados, disputando espaço com os automóveis, enfrentando obstáculos criados pela falta de responsabilidade com o espaço público, privados de usufruir de direitos fundamentais.
RADIOGRAFIA DO CAOS - Em Feira de Santana, cidade que, cada dia mais, cresce exclusivamente em função da frota de veículos individuais,caótica em função da falta de ordenamento do trânsito e do solo, carente de projetos de mobilidade que beneficiem efetivamente seus habitantes, percebe-se claramente as dificuldades enfrentadas cotidianamente pela população.
Atravessar uma rua ou avenida é um exercício complicado, mesmo nos locais onde há faixas de pedestres.A ausência de semáforos e de agentes de trânsito em diversos pontosda cidadeestimula o desrespeito. Movidos pela falta de consciência cívicae pela certeza da impunidade, muitos motoristas simplesmente ignoram a sinalização, ameaçando a integridade física dos pedestres e de outros condutores.Em contrapartida, já que não há respeito por parte de quem dirige, muita gente também deixa de atravessar nas faixas, desconsiderando o aumento da probabilidade de acidentes e complicando ainda mais o tráfego.
O trânsito tumultuado, sobretudo em função da grande quantidade demotocicletas,limita o direito pleno à mobilidade e indica que a cidade não está medindo os custos do progresso. Andar de bicicleta, que seria a alternativa mais viável ao carro, significa, muitas vezes, pôr a própria vida em risco, já que não existem ciclovias, nem sinalizações específicas que garantam a convivência pacífica de todos os modais de transporte nas ruas. Mas quem utiliza a bicicleta também comete imprudências, realizando manobras totalmente inadequadas em meio ao trânsito pesado.
Acessibilidade é uma palavra pouco lembrada pelos gestores. Rampas, sinalizações, calçadas e transportes adequados ao trânsito de pessoas, sobretudo as portadoras de necessidades especiais, são artigos de luxo. Algunsproblemas se tornaram crônicos em Feira de Santana edificultam ainda mais a rotina de cadeirantes e deficientes visuais: o desnivelamento;o relevo irregular; a falta de manutenção; e a ocupação indevida das calçadas, na maioria das vezes construídas e obstruídas, pela população, sem qualquer regulação.
Mas a posse irregular dos passeios, que, em tese, são bens de uso comum do povo, não afeta apenas a vida dos portadores de necessidades especiais. A população, de um modo geral, sofre as consequências da falta de ordenamento do solo no perímetro urbano.Poucos minutos no centro comercial são suficientes para se constatar que é difícil se locomover. O simples movimento de caminhar exige paciência. Sem espaço, em função da grande quantidade de barracas e mercadorias pertencentes tanto ao comércio formal quanto ao informal, da instalação de postes e placas de sinalização em locais inapropriados e da imprudência de alguns motoristas, que estacionam veículos até mesmo em cima das calçadas, os pedestres, quase sempre, invadem as ruas. E correm riscos.
Quem depende do serviço de transporte coletivo também reclama da violação do direito à mobilidade. Frequentemente apontado como precário pela população, o setor não atende aos requisitos básicos da prestação de um bom serviço. Os usuários se queixam, principalmente, dos atrasos, da superlotação e das condições estruturais dos veículos que rodam na cidade, especialmente nos bairros periféricos. Nos fins de semana e à noite, esses problemas se agravam e, muitas vezes, acabam por privar a população de um direito que também é inalienável: o lazer.
E se a falta de um transporte coletivo de qualidade já interfere negativamente na vida das pessoas consideradas saudáveis, a situação é muito mais complicada para aquelas que têm algum tipo de deficiência ou idade avançada. Poucos ônibus são adaptados e a superlotação dificulta ainda mais a vida desses passageiros, infligindo a eles um sofrimento totalmente desnecessário. A cidade tem uma das passagens de ônibus mais caras do país e o valor chega a se aproximar, inclusive, da quantia cobrada em metrópoles estrangeiras que, há muito, resolveram esse e outros problemas de mobilidade. Isso demonstra que a precariedade do serviço local não se justifica, principalmente se levarmos em consideração a extensão dos trajetos, o tempo de espera e o desconforto enfrentado pelos usuários cotidianamente.
A escassez de espaços públicos arborizados também é outro grave problema de mobilidade, ainda pouco considerado e discutido. No centro e na maioria dos bairros, não há áreas abertas ao trânsito e à convivência de pessoas.Os poucos espaços existentes ou estão mal cuidados ou são inseguros, sobretudo à noite.As grandes cidadesdo mundo,algumas delasbrasileiras, preservaram suas praças e áreas verdes, mas Feira de Santana ainda é muito carente nesse aspecto. E isso também influi negativamente na vida da população.
CIDADE PARA PESSOAS - Tantos problemas revelam a iminente necessidade de se dar um tratamento diferenciado à cidade, sob o ponto de vista do planejamento estratégico, promovendo transformaçõessimples, mas capazes de mudar radicalmente a maneira de a população viver, coabitar se relacionar com o ambiente onde vive.
Especialistas do mundo inteiro apontam que o modelo de cidade que tem o carro como referencial de crescimento faliue que não é mais possível resolver o problema da mobilidade nos grandes centros urbanos construindo viadutos.Isto porque quanto mais automóveis, mais viadutos são necessários: um ciclo sem fim, que extenua rapidamenteo espaço no perímetro urbano. Portanto é urgente pensar outras formas de deslocamento alternativas ao carro, oferecendo condições estruturais eficazes, que incentivem as pessoas a priorizarem os deslocamentos por meio de transportes coletivos, como ônibus, metrôs e trens,ou por meio de modaisnão poluentes, como a bicicleta, principal meio de transporte em países como a Dinamarca.
Corredores de tráfego para a viabilização dos transportes coletivos; ciclovias; implantação de semáforos inteligentes, que trabalhem em função do fluxo de carros, e não do tempo; assim como a reorganização do tráfego pesado na área urbana;aregulação eficaz dos serviços de carga e descarga; o planejamento do município para além do seu anel viário; a verticalização bem projetada; a construção de parques e áreas verdes e o ordenamento e fiscalização do uso do solo são algumas alternativas que podem contribuir para melhorar a qualidade de vida dos feirenses.
PLANO DIRETOR - No entanto, é preciso lembrar que o planejamento de uma cidade, passa, essencialmente, pela elaboração e aplicação de seuPlano Diretor de Desenvolvimento Urbano (PDDU). O documento, que faz parte do Estatuto da Cidade, rege o crescimento eo funcionamento dos centros urbanos, apresentando possibilidades de mudança,com o objetivo de tornar as cidades mais organizadas e humanizadas.
Segunda maior cidade da Bahia, Feira de Santana ainda tem um Plano Diretor defasado, que não espelha mais a realidade de seu traçado urbano, haja vista o município haver crescido rapidamente e sem planejamento.Em 2015, a Prefeitura Municipal assinou contrato com a Universidade Federal da Bahia (Ufba), vencedora da licitação, para a atualização do documento. O contrato, orçado em R$ 1,9 milhão, teria duração de 12 meses, mas, até o momento, o novo Plano Diretor da cidade não foi concluído. E ainda não háprevisão de entrega.A atualização do PPDU é fundamental para planejar a Feira de Santana que se quer ter no futuro. Somente a prática das diretrizes preconizadas pelo documento permitirá pensar a cidade não só territorialmente, mas também econômica, ambiental e culturalmente, direcionando o seu crescimento para a requalificação da vida da população.
É preciso ter em conta que nãoé possível solucionar os problemas de mobilidade sem pensar prioritariamente nas pessoas.Todavia, humanizar uma cidade, buscando formas de dissolver os conflitos entre seus habitantes e sua lógicaestrutural, vai muito além de se resolver problemas de trânsito, de ocupação irregular do solo e de seviabilizar novas opções de transporte coletivo.
Transformar centros urbanos em cidades para pessoas significa também educar, conscientizar, engajare preparar a população para habitar essa nova cidade.A sociedade civil necessita conhecer as possibilidades de mudança contidas no Plano Diretor e adotar uma postura proativa de zeladoria urbana. De acordo com os especialistas, esse é o único caminho para se construir uma cidade pautada em valores mais humanos.
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