Foto: STF
O julgamento sobre a constitucionalidade da prisão de condenados em segunda instância começou nesta quinta-feira (17) com uma tentativa do presidente do STF (Supremo Tribunal Federal), ministro Dias Toffoli, de dissociar o debate do caso do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
O Supremo iniciou a análise de três ações que discutem, de forma abstrata, se é constitucional prender um condenado em segundo grau antes de esgotados todos os recursos nos tribunais superiores. O julgamento continua na próxima quarta-feira (23). “As ações definirão o alcance dessa norma constitucional [da presunção da inocência]. O entendimento que daqui emanará servirá de norte para a atuação de todos os magistrados do país e todo o sistema de Justiça. Que fique bem claro que este julgamento não se refere a nenhuma situação particular”, disse Toffoli, ao abrir a sessão plenária.
“A defesa da Constituição é o que tem norteado a atuação republicana deste Supremo Tribunal Federal ao longo de sua história, e hoje e nas próximas sessões não será diferente”, afirmou, rebatendo indiretamente as críticas que a corte tem sofrido por ter resolvido julgar as ações. Em 2016, o STF alterou sua jurisprudência, que vinha desde 2009, e voltou a autorizar a execução da pena antes de esgotados todos os recursos.
Uma mudança nesse entendimento teria, hoje, o potencial de beneficiar Lula, o mais célebre condenado da Lava Jato, e 4.895 réus que tiveram a prisão decretada após condenação em segundo grau, de acordo com dados do CNJ (Conselho Nacional de Justiça) divulgados na quarta (16). Nos últimos dez anos, o plenário do Supremo enfrentou esse tema ao menos cinco vezes, na maioria delas ao analisar casos concretos de pessoas condenadas. Agora, está sendo julgado o mérito de ações que tratam do assunto de forma geral, o que deve levar a uma resposta definitiva do tribunal.
O Supremo está dividido: há ministros que defendem a prisão em segunda instância e ministros que entendem que é preciso esperar o trânsito em julgado (o fim de todos os recursos). No meio, há uma proposta feita ainda em 2016 por Toffoli para autorizar a execução da pena após o julgamento do recurso no STJ (Superior Tribunal de Justiça), que é considerado uma terceira instância.
O relator das ações, ministro Marco Aurélio, foi o primeiro a falar nesta quinta-feira. Durante a leitura do relatório, que antecedeu as sustentações orais dos autores das três ações, Marco Aurélio lembrou que elas estavam prontas para serem julgadas desde 2017. Diante da demora para serem incluídas na pauta do plenário, disse o ministro, ele decidiu liminarmente (provisoriamente), em dezembro de 2018, soltar todos os réus que cumpriam pena antes do trânsito em julgado de seus processos.
A decisão liminar, que causou polêmica à época, foi derrubada no mesmo dia por Toffoli. Marco Aurélio criticou a atuação do presidente da corte nesse episódio. “É inconcebível visão totalitária e autoritária no Supremo. Os integrantes ombreiam, apenas têm acima o colegiado. O presidente é coordenador, não superior hierárquico dos pares. Tempos estranhos em que é verificada até mesmo a autofagia. Aonde vamos parar?”, disse.
Ao final da sessão, Toffoli, que fora criticado, elogiou o relatório lido por Marco Aurélio e, demonstrando estar emocionado, disse que os apontamentos feitos aumentaram sua admiração pelo colega —com quem vinha tendo atritos dentro e fora das sessões.
Representantes do partido Patriota (antigo PEN), da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) e do PC do B, autores das ações, fizeram suas manifestações na tribuna do STF. Em seguida, dez amici curiae (amigos da corte, em latim) falaram. Na próxima quarta-feira, serão ouvidos outros dois amici curiae, a PGR (Procuradoria-Geral da República) e a AGU (Advocacia-Geral da União). A votação propriamente dita começará em seguida, com o voto do relator, Marco Aurélio. A expectativa é que o julgamento ainda demore mais três ou quatro sessões.
A PGR enviou nova manifestação aos ministros do STF reafirmando considerar que prisão em segunda instância é constitucional. O documento, assinado pelo procurador-geral interino, José Bonifácio de Andrada, pede ao tribunal que mantenha a jurisprudência atual ou, ao menos, que permita a execução da pena após o julgamento do recurso no STJ.
O procurador-geral, Augusto Aras, está em viagem à Itália, onde participou da cerimônia de canonização de Irmã Dulce, e volta ao Brasil nesta sexta-feira (18). Com exceção do Patriota —que no passado contestou no STF a prisão em segunda instância e, hoje, mudou de lado e passou a defendê-la—, todos os que fizeram sustentação oral nesta quinta defenderam que é preciso esperar o trânsito em julgado (o fim dos recursos) para executar a pena de um condenado.
Foram recorrentes as críticas à Lava Jato e à imprensa, as afirmações de que a prisão em segunda instância prejudica não só políticos e ricos, mas principalmente os réus mais pobres, e os apelos para que o Supremo não escute a suposta opinião pública. “Por mais paradoxal que isso pareça, fazer a coisa certa não é atender à voz das ruas. Há direito ou não há direito? O artigo 283 espelha a Constituição. Seria a Constituição inconstitucional?”, disse Lênio Streck, que representou a Abracrim (Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas).
O jurista se referiu ao artigo 283 do Código de Processo Penal, que está no centro do debate no STF. O artigo que diz que ninguém pode ser preso exceto em flagrante ou se houver sentença condenatória transitada em julgado —ou seja, quando não couber mais recurso. O código é de 1941. O artigo 283 foi modificado em 2011 por uma lei que buscou replicar um trecho do artigo 5º da Constituição, segundo o qual “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. “Podemos discordar da Constituição, dizer que ela é retrógrada, atrasada, mas é o que a Constituição diz”, afirmou José Eduardo Cardozo, ex-ministro da Justiça (PT) que falou pelo PC do B. Para ele, a Constituição é clara ao dizer “trânsito em julgado”, o que significa “sentença que não comporta mais recurso”.
“Haverá furtadores de chinelos e bolachas presos e se ‘profissionalizando’ nas prisões”, disse o defensor público-geral federal, Gabriel Faria Oliveira, representante da Defensoria Pública da União, criticando a prisão em segunda instância. “A relativização no processo penal vai permitir a relativização de outros direitos fundamentais. É uma porta que se abre”, afirmou o defensor público do Rio de Janeiro Pedro Carriello. Para ele, a mensagem que fica, com a execução antecipada da pena, é que os policiais também podem “antecipar a pena na favela” —referência às mortes causadas por agentes de segurança.
No mesmo sentido, a advogada Silvia Souza, da ONG Conectas, disse que a discussão sobre as prisões não deve se pautar só pelos crimes de colarinho branco, pois eles não são a maioria. “Os corpos negros estão nas valas, nas prisões, em condições subumanas”, declarou, observando ser a única mulher e a única pessoa negra a sustentar no plenário do Supremo nesta quinta. O advogado Antônio Carlos de Almeida Castro, o Kakay, disse que o debate público sobre o tema foi desvirtuado pela Lava Jato. “Em setembro de 2016 [quando uma das ações chegou ao Supremo] o Lula não era sequer investigado. Houve uma clara manipulação [do debate]. Dizer que isso é contra a Lava Jato? A estrutura de marketing da Lava Jato é muito melhor que a estrutura jurídica.”
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