A decisão da Anvisa de liberar a importação da vacina Sputnik V foi travestida de iminentemente técnica. Porém não há santo que permita isolar a autorização à pressão política, especialmente dos governadores do Nordeste, que se organizaram para adquirir o imunizante meses atrás. Por mais que existam limitações à utilização das doses, essa decisão evidencia que a união de Estados da federação pode ter resultados práticos do ponto de vista político.
O Consórcio do Nordeste ainda tem um calo no sapato do início da pandemia, quando houve a aquisição inócua - e ainda ligeiramente nebulosa - de respiradores mecânicos. Esse se tornou o principal entrave para que a entidade ganhe a dimensão possível. Tanto que os adversários insistem nessa tese para mobilizar críticos aos governos estaduais nordestinos. Em outros tempos, poderia provocar algum impacto real. Nas atuais circunstâncias, gera cócegas na popularidade dos governadores. E agora, com a aprovação da Sputnik V, é provável que até esse tema dos respiradores seja finalmente suplantado.
Em termos de números, a vacina russa é irrisória com a liberação feita pela Anvisa. A Bahia, por exemplo, terá 300 mil doses, o equivalente aos 1% da população autorizado pela agência. O governador Rui Costa trabalhava com 10 milhões de doses para os baianos. Ou seja, não deixa de ser uma frustração essa discrepância entre expectativa e realidade. Todavia, essa informação parece ter ficado em segundo plano. As comemorações foram no sentido de vacina boa é a vacina no braço. E não está errado. Só é preciso ter a noção dessas estratégias discursivas.
Voltemos ao ganho político. Enquanto havia uma disputa entre o governador de São Paulo, João Doria, e o presidente Jair Bolsonaro pela paternidade da vacina brasileira, os governadores nordestinos optaram por apostar na liberação da vacina russa, talvez o imunizante menos reconhecido por outros organismos internacionais. No entanto, era de acesso facilitado e com interesse direto da Rússia para entrar no competitivo mercado das vacinas contra a Covid-19. O Brasil, como nem é preciso lembrar, é um dos mercados mais expressivos do mundo. Tal razão explica o empenho de Moscou em articular a liberação da vacina. E os governadores nordestinos se aproveitaram bem disso.
Errados não estão. Por isso o simbolismo da decisão da última sexta-feira da Anvisa. O imunizante russo vira uma carta na manga dos gestores do Nordeste para apresentarem eleitoralmente o esforço para adquirir vacinas, enquanto figuras como Doria e Bolsonaro lutavam para ver quem tinha sido o primeiro a trazer doses, o Consórcio tentava viabilizar números para não ficar pra trás nessa disputa. O resultado na agência ficou aquém do esperado. Mas foi uma vitória política importante. E isso ninguém pode negar.
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