Com a pandemia, milhões de estudantes brasileiros, sobretudo os matriculados em escolas públicas, ficaram afastados das atividades escolares desde março de 2020. Para uma parte, no entanto, o ensino remoto virou a opção. Para outros tantos, o empecilho, em consequência da falta de acesso à rede de internet e a equipamentos digitais.
Na última sexta-feira (19), o presidente Jair Bolsonaro vetou integralmente o projeto de lei que obrigaria o governo a garantir internet gratuita nas escolas públicas (reveja) e somente nesta segunda-feira (22) assinou o decreto da nova regulamentação do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb) (reveja).
Apesar das urgências imediatas, os ministro da Educação, o pastor Milton Ribeiro, e a ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, têm empreendido esforços para aprovar na Câmara o projeto que autoriza o homeschooling – educação domiciliar -, pauta histórica de grupos religiosos. A proposta que, se depender do desejo dos ministros e do governo federal seguirá para votação direto em plenário, burlando as necessárias discussões na Comissão de Educação da Câmara dos Deputados, foi assinada por Bolsonaro em abril de 2019. A educação domiciliar integra a lista com as 100 prioridades do governo.
De acordo com reportagem da Folha de S. Paulo, já existe, na Câmara, acordo entre lideranças para que seja dispensada as discussões no âmbito do colegiado de Educação. A intenção do Planalto é garantir aprovação do projeto ainda no primeiro semestre de 2021. Não há, porém, consenso entre os deputados da própria comissão quanto ao apoio ao texto e à manobra pretendida pelo governo para a aprovação do PL, como relevam as diversas opiniões existentes entre os deputados federais baianos que integram o colegiado.
No total, cinco baianos são listados na Comissão de Educação. Alice Portugal (PCdoB), Lídice da Mata (PSB) e Bacelar (Podemos) como titulares. Dayane Pimentel (PSL) e Waldenor Pereira (PT) como suplentes.
Ao Bahia Notícias, a deputada Alice Portugal confirmou que o assunto tem circulado nos corredores da Casa, mas prontamente revela discordância com a manobra. “Nós não vamos concordar que essa prática continue a existir na Câmara dos Deputados, de perpasses das comissões permanentes porque reduz o debate de temas importantes como esse. Eu, enquanto membro titular da comissão, vou defender que se debata profundamente”.
Alice, no entanto, não discorda integralmente da proposta de existência da possibilidade de um modelo educacional domiciliar. Segundo ela, é possível defender a proposta “quando houver uma orientação psicopedagógica, quando houver, por parte do aluno, uma indisponibilidade por qualquer razão para a vivência social. O projeto precisa ser lapidado para que essa modalidade possa ser usada para os casos necessários. Eu não quero diabolizar os mecanismos”, diz.
E acrescenta: “Infelizmente, há projetos e opiniões que circulam na Câmara que são um projeto de apartheid escolar. Há segmentos que não querem [entre aspas] 'contaminar' a formação dos filhos com os conteúdos das escolas. Isso foi verbalizado por alguns deputados governistas. O homeschooling tem grande valor quando é aplicado nos casos certos”.
A ponderação também é feita pelo deputado Bacelar. “Eu não gosto, mas não sou contra. Não posso ser contra porque acho que famílias em situações especialíssimas podem escolher educar seus filhos”. Segundo ele, as questões “especialíssimas” incluem “questões religiosas, dificuldade de acesso, ter conhecimento de uma pedagogia diferente e querer aplicar, assim como família que se deslocam pelo mundo”. Alerta, no entanto, a necessidade de “regras rígidas de controle”.
Para Bacelar, o peso negativo da proposta é o momento escolhido pelo governo para priorizar a pauta na Câmara. “Com 300 mil mortes, meses de escolas fechadas e o governo trazer um assunto que interessa entre 5 a 30 mil pessoas, quando 40 milhões de brasileiros estão sem acesso a escola, é uma coisa que sai do campo da política, da educação, da administração, é a irracionalidade”, classifica o deputado.
“Isso aqui só lembra a Revolução Francesa, Maria Antonieta. Se não tem pão, comam brioches. Esse não é o momento dessa discussão. Esse tem que ser o último dos últimos assuntos. Cadê a vacina, Bolsonaro? Esse que deve ser o ponto número um”, enfatiza Bacelar. Ele também se opõe a uma discussão diretamente em plenário.
Já a deputada Dayane Pimentel, ex-aliada do presidente Bolsonaro, não vê problema em se estabelecer uma discussão diretamente no plenário da Casa, pois entende que o homeschooling “não se trata de uma medida de exclusão dos métodos convencionais, mas como uma alternativa para os pais que não optam pela estrutura tradicional de escola”.
“Eu opto pela escola na educação de conteúdo para meu filho, mas acho correto os pais poderem optar pelo método que acharem melhor”, explica Dayane em nota enviada ao site por meio de sua assessoria. A deputada afirma ser favorável ao PL.
O deputado Waldenor Pereira demonstra posicionamento contrário à proposta, assim como ao método que o governo tenta emplacar. "A apologia a educação domiciliar em um cenário de total precarização da escola pública naturaliza a negação do direito à educação pública de qualidade, podendo resultar ainda no aumento significativo do analfabetismo e na redução drástica nas taxas de escolarização. Nada substitui a escola", diz. O parlamentar destaca ainda as determinações apontadas pelo Conselho Nacional de Educação, o qual prevê a matrícula obrigatória, o ensino presencial e o convívio com outras pessoas em idade semelhante.
"Esse convício, inclusive, é considerado como componente indispensável a todo processo educacional. Essa proposta de educação domiciliar, nega a escola, desacredita o professor e a função do Estado na formação do aprendizado. Ela retira da escola o seu papel na rede de proteção de crianças e adolescentes", enfatiza. "Eu voto contra".
O Bahia Notícias também buscou contato com a deputada Lídice da Mata, mas não obteve retorno dentro do prazo de apuração da matéria.
DIRETRIZES E BASES DA EDUCAÇÃO
A educação domiciliar é uma modalidade de ensino em que pais ou tutores responsáveis assumem o papel de professores dos filhos. Na prática, o projeto de lei altera a Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990, que dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional (LDB).
De acordo com a Constituição Federal e a Lei de Diretrizes e Bases Educacionais LDB, a educação é "dever do Estado e da família". Aos pais ou responsáveis é determinada a obrigatoriedade de "efetuar a matrícula das crianças na educação básica a partir dos quatro anos de idade”.
Segundo publicação do Ministério da Educação, veiculada no site da pasta quando da assinatura do projeto, a medida pretende trazer os requisitos mínimos que os pais ou responsáveis legais deverão cumprir para exercer esta opção. Na nota, sob a gestão de Ricardo Vélez Rodrígues, primeiro ministro da Educação do governo Bolsonaro, já é possível aferir a tentativa de protagonismo do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humamos na pauta. As explicações do projeto são creditadas Pedro Hollanda, secretário adjunto da Secretaria Nacional da Família da pasta chefiada por Damares.
No Brasil, a prática da educação domiciliar é liberada somente no Distrito Federal, a partir de Lei sancionada em dezembro de 2020 pelo governador o governador Ibaneis Rocha (MDB), e que entrou em vigência em fevereiro deste ano.
Nos demais estados, a impossibilidade do ensino domiciliar é amparada em uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), que, em 2018, entendeu não haver uma lei que regulamente o ensino domiciliar no país.
A falta de uma legislação específica, famílias acabam recorrendo à Justiça para garantir uma autorização especial. Em 2016, uma pesquisa realizada pela Associação Nacional de Educação Familiar (Aned) revelou que 7.500 famílias conseguiram na Justiça resultado favorável e conduzem em domicílio a educação.
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